sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

MACBETH – William Shakespeare


Assistir ao filme do Polanski na madrugada de ontem me fez mergulhar novamente nesta terrível e poderosa história.

Macbeth foi meu primeiro verdadeiro encontro com Shakespeare.

Já havia lido Hamlet na faculdade, para uma interessante comparação entre Édipo e Hamlet. Édipo é o herói que age por não saber. Ele desconhece que é seu pai o homem que sucumbe sob sua espada, e tampouco sabe que é sua mãe a rainha com quem se deita. Hamlet, pelo contrário, por saber não age. Ele sabe muito bem quem matou seu pai, o rei da Dinamarca. Foi o próprio fantasma do rei que contou. E o peso dessa revelação o torna incapaz de agir.

Édipo X Hamlet. Ação X Conhecimento. Uma viagem interessante.

Shakespeare, porém, ficou fora de meu alcance nessa primeira leitura. Um obstáculo ficou por conta da tradução, que tascou um HAMLETO na capa. Por algum motivo, essa única letra a mais me incomodou profundamente. Foi como se eu estivesse lendo “As Aventuras de Xerloque Rolmes” ou algo assim. Como precisava ler o livro para fazer uma prova, foi aquele mesmo. Mas a leitura transcorreu em intenso desgosto.

Mas o obstáculo maior ficou por conta da própria fama da obra e, principalmente, de sua implacável absorção pela indústria cultural. “Ser ou não ser” já virou chiclete mascado e cuspido fora, algo que todos acham que entendem de tanto que ouviram. Por conta disso, quando a frase aparece na peça é um miserável anticlímax.


A Experiência Shakespeare

Há alguns anos atrás, como letrista de uma banda de heavy metal, eu lastimava a indigência de meus conhecimentos em inglês, que me deixava sempre sob o risco de cometer os mais grosseiros erros.

Por isso tomei a decisão de ler Shakespeare no original. Em minha impetuosidade juvenil, eu simplesmente queria aprender com o melhor!

Para me armar de coragem, descobri um argumento que até hoje acho válido. Como o texto estava escrito em inglês arcaico, boa parte das palavras era desconhecida também para um falante nativo da língua inglesa. Sob o meu ponto de vista, um “gringo” e eu estávamos em igualdades de condições para ler Shakespeare.

Dei a sorte de encontrar uma excelente coleção, “Penguin Popular Classics”, que era vendida na Sodiler do Rio a preço de banana. As peças de Shakespeare vinham acompanhadas por um providencial glossário!

Comprei vários livros de uma vez, clássicos em liquidação. E comecei por Macbeth, até hoje a minha tragédia predileta.

A primeira leitura foi árida e nebulosa. Mas já de cara, a fala inicial das bruxas ficou marcada a ferro e fogo:

“When shall we three meet again?
In thunder, in lightning or in rain?”

[Quando nós três nos encontraremos de novo?
Debaixo de trovão, de raio ou de chuva?]


Quanto à história, pude ter apenas uma vaga noção do que acontecia. Foram as frases que ficaram. E deram origem a um amor que chegou a raiar a adoração:

“Full of scorpions is my mind”

[Minha mente está cheia de escorpiões]

“Thou canst minister to a mind diseased
Pluck from the memory a rooted sorrow”

[Tu (o médico) não podes curar uma mente enferma
Ou arrancar da memória um sofrimento enraizado]

“Nature’s copy is not eterne.”

[A cópia da natureza (o corpo) não é eterna]

“Poor player that struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more.”

[Pobre palhaço que se espavoneia e se esforça durante sua hora no palco,
E depois não se ouve mais]



Foi uma paixão avassaladora. Durante os meses seguintes devorei tudo o que pude de Shakespeare. Muito ajudou o experimento com “Rei Lear”, quando li as duas edições ao mesmo tempo, uma cena por vez, primeiro o original e depois a indefectível tradução de Millôr. Valeu por vinte anos de Cultura Inglesa!!!

E algum tempo depois, finalmente, tive a minha experiência mística com Shakespeare. Foi com “Twelfth Night” (“Noite de Reis”), livro que comecei a ler não menos que uma dezena de vezes.

A cada vez, a leitura das três primeiras linhas me enchia de uma emoção tão intensa que eu me sentia incapaz de continuar lendo:

“If music be the food of love, play on,
Give me excess of it; that surfeiting,
The appetite may sicken, and so die”

[Se a música é o alimento do amor, toquem,
Dêem-na em excesso; para que o apetite seja saciado
e enfraqueça, até que morra]



Macbeth (continuação)

Em sua "Poética", Aristóteles define os padrões e características da tragédia.
O principal objetivo da tragédia é promover a catarse: a pessoa é levada a vivenciar emoções "negativas" (tais como o medo, a tristeza e a pena) e, através da catarse, a livrar-se dessas mesmas emoções.

O que diferencia uma boa tragédia de uma tragédia chinfrim, segundo o Filósofo, é a maneira como a catase será alcançada, através do uso adequado de alguns recursos literários, principalmente a "reviravolta" e o "reconhecimento".

A reviravolta, como o próprio nome já diz, ocorre quando há uma mudança brusca e inesperada na trama. "Édipo Rei" é rica em reviravoltas: a criança abandonada para morrer é salva da morte, o jovem aventureiro decifra o enigma da Esfinge e torna-se o rei de Tebas, o aclamado rei-herói acaba como um pária cego e sem destino.

Já o reconhecimento se dá quando os personagens tomam ciência de um fato até então desconhecido por eles (mas não necessariamente pelo público). O exemplo clássico de reconhecimento está também em "Édipo Rei", quando Édipo descobre que é filho de Laio e Jocasta. Neste caso, o reconhecimento é acompanhado por uma reviravolta, exemplo sublime e louvado por Aristóteles.

Note-se que este manual de redação de tragédias foi escrito há quase 2.500 anos atrás, mas aplica-se perfeitamente à análise de qualquer novela televisiva!!!

O motivo dessa explanação sobre a "Poética" é que, em minha opinião, a tragédia que melhor alcançou o patamar idealizado por Aristóteles (além, é claro, de "Édipo Rei", foi "Macbeth").
Existem, é claro, muitas diferenças entre a tragédia elizabetana (Macbeth) e a tragédia grega (Édipo), tais como a divisão em cinco atos da primeira e a presença de coro e corifeu na segunda. Mas as semelhanças são maiores, principalmente no nível de gênios como Shakespeare e Sófocles.

A história de Macbeth é uma sucessão eletrizante de reconhecimentos e reviravoltas, graças à enigmática participação das três bruxas. São as bruxas que profetizam que Macbeth será coroado rei. Elas prevêem igualmente que a linhagem de Macbeth será extinta, enquanto a de Banquo gerará reis sem conta. As duas profecias finais das bruxas são as mais intrigantes: Macbeth jamais será derrotado por um homem nascido do ventre de uma mulher e nada terá a temer enquanto a floresta não se erguer do chão e avançar contra ele.

Á medida que cada uma dessas profecias vai se concretizando, o leitor (ou espectador) vai sendo submetido a uma progressão absurdamente genial da catarse: Macbeth é uma história que fica marcada na alma, tamanho o seu impacto, tamanha a sua força, tamanha a grandeza de sua arte.

L. (Leopold? Leonard?) Bloom, considerado a maior autoridade em Shakespeare, cunhou a frase definitiva sobre o Bardo:

"Shakespeare inventou a alma moderna."

Ficou faltando ainda uma palavra sobre a versão cinematográfica de Roman Polanski´para "Macbeth", que acabou originando essa longa resenha: o filme é sinistro de bom!!!!!!!


Um comentário:

  1. Uau, que maravilha! Fabio querido, te admiro demais por seu conhecimento e intimidade com Shakespeare. Essa é umas das tragédias shakesperianas que sempre quis ler. Pequena contribuição: o nome do crítico que vc queria lembrar é Harold Bloom. Parabéns pela belíssima resenha.

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